O jornalista Rogério Lessa entrevista o escritor Francisco Soriano.


Quatro décadas após a instalação de uma cruel ditadura no Brasil, o petroleiro Francisco Soriano, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) de Carlos Marighella, narra no livro “A Grande Partida: Anos de Chumbo”, sua saga e a de seus companheiros vivida na luta armada. Sem cunho revanchista, ele não se limita à narração dos fatos que vivenciou. Ao contrário, nesta entrevista exclusiva ao MONITOR MERCANTIL ele aponta para novos caminhos, como o da economia solidária, onde a produção é destinada às necessidades do mercado, em detrimento da especulação com a moeda. “Creio que o neoliberalismo já atingiu o ápice. O desemprego 
graça em níveis muito superiores àqueles que Keynes concebia como estrutural. 
No Brasil, fica difícil até calcular o PIB numa economia em que 50% da força de trabalho vive na informalidade”, diz Soriano, um nacionalista, admirador de Barbosa Lima Sobrinho, que acredita que o interesse nacional deve estar em primeiro lugar. “O inimigo é o grande capital”, resume.

O que o levou a escrever “A Grande Partida: Anos de Chumbo”?

A idéia principal é resgatar companheiros que tombaram no caminho. O livro é também uma homenagem a José Milton Barbosa, um sargento rádio-telegrafista que participava comigo da Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella. Marighella rompeu com PCB e arrastou, tanto no Rio como em São Paulo, meio mundo para a chamada corrente revolucionária. Por influência de um fórum que houve em Havana, Cuba, chamado Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas), Marighella passou não só à ação revolucionária como também a rejeitar partidos políticos.

Essas organizações combatiam a ditadura e pregavam o socialismo, simultaneamente. Acredita que se priorizassem apenas o combate à ditadura teriam mais sucesso?

Difícil responder essa pergunta, porque efetivamente chegaram em nosso apoio udenistas frustrados, pessedistas e mesmo os trabalhistas que não eram propriamente socialistas. O partido trabalhista de então se parecia com o PT de hoje, com muitas facções. O mesmo ocorria com o PCB, mas predominava a visão nacionalista e a perspectiva de um capitalismo mais humano.

Foi a economia quem derrubou a ditadura?

Com o nosso aniquilamento, a ditadura não tinha mais porque manter a violência naquele grau. Aí vem a crise econômica. A primeira crise do petróleo, em 1973, jogou o preço do barril de US$ 3 para US$ 12. Em 1979, um segundo choque eleva o preço para quase US$ 60. A Petrobras de então produzia 20% do petróleo que o país consumia. O governo militar cometeu um erro grave na economia que foi demorar a pisar no freio, como os europeus fizeram. Manter o crescimento da época do milagre custou muito caro. A dívida externa sai de US$ 3 bilhões, com Jango, para US$ 120 bilhões no fim da ditadura. A crise do petróleo tem forte impacto também na inflação. Fora isso, a ditadura cai na execração por causa da postura arrogante, perversa, com fechamento de universidades, carreiras políticas abortadas. A igreja também acorda. Depois de engrossar a marcha com Deus pela liberdade, verificou que não havia liberdade alguma. Padres eram assassinados. A ditadura tratava de maneira bestial e indiscriminada os seus opositores.

Na trajetória do presidente Lula, houve um período de antagonismo com os trabalhistas. Isto ajudou a enfraquecer a esquerda no período da redemocratização?

Depois da ditadura houve briga por espaço político e o ex-ministro da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, fez a chamada “engenharia da abertura”, abrindo para os comunistas somente depois de aceitar os partidos trabalhistas. Passou pelos planos do Golbery fazer do PT um instrumento de sua conspiração contra os comunistas. Ele agiu sabiamente, para fazer com que restasse pouco espaço legal depois para os comunistas. Para isto colaborou o fato de que, na época, o PMDB abrigava boa parte da esquerda e muitos temeram perder uma estrutura partidária. O próprio PSDB no começo tinha muitos quadros progressistas. Fernando Henrique Cardoso era tido como progressista e nacionalista.

Hoje há uma aparente desesperança com a esquerda e mesmo a social-democracia tem sido trocada pelo neoliberalismo. Por quê?

Com a queda do Muro de Berlim, o “dragão” capitalista ficou solto e não tinha mais as bandeiras dos comunistas nem a ameaça atômica da ex-União Soviética. Mas aquele período foi importante para se fazer uma auto-crítica. Precisamos rever o conceito de ditadura do proletariado. Toda ditadura termina não sendo de ninguém, vira um Estado policial, que ninguém controla. O característico nas ditaduras não é só o sofrimento, as torturas, mas também a corrupção, que não pode ser investigada. A corrupção é inerente ao capitalismo, porém na ditadura ele fica mais solto para corromper. É inegável o quão corruptas foram as ditaduras de Salazar, em Portugal, e Pinochet, no Chile, por exemplo. Costa e Silva era viciado em jogo. Endividado, foi desaguar no seio dos golpistas. Jango teria negado a ele um cargo melhor. Jango foi traído por amigos dentro do Exército.

A decepção com os governantes eleitos está levando o povo brasileiro à desesperança na democracia?

Lula continua com a política de leilões de poços de petróleo, o que é um crime de lesa-pátria. Fez a reforma da Previdência. Mas por outro lado, há que se considerar a questão da compra de plataformas no Brasil, a volta de muitos demitidos, como os 7 mil mata-mosquitos; dos companheiros da greve de 1995. Para não ser unilateral, sou obrigado a compreender a indignação de dissidentes como Heloísa Helena, mas há o argumento de que o PT não foi eleito sozinho, nem chegou ao poder por armas, como Getúlio Vargas. Há uma diferença quando um grupamento chega ao poder. Se a revolução francesa, de 1789, cumprisse seus ideais de igualdade, fraternidade e liberdade talvez não houvesse necessidade da revolução socialista de 1917. Se todas as religiões pregam a fraternidade, porque há 40 milhões de miseráveis no Brasil? Será que o bicho homem não merece crédito? Fica essa grande dúvida.

Como está vendo as manifestações de estudantes e trabalhadores na França? O neoliberalismo está perdendo força?

Creio que já atingiu o ápice. Essas populações acordaram para o fato de que o capitalismo não é solução para nada. Não atende às suas demandas. O desemprego graça em níveis muito superiores àqueles que Keynes concebia como estrutural. A informalidade na economia é grande. No Brasil, fica difícil até calcular o PIB numa economia em que 50% da força de trabalho vive na informalidade. Tudo isso leva a crer que o neoliberalismo passou de seu ponto máximo. Aqui na América Latina, onde o neoliberalismo foi muito mais fundo, está havendo a retomada dessas bandeiras do Estado social, Estado necessário. Na Argentina, o presidente retoma empresas de petróleo, distribuição de água, criando estatais.

O senhor defende a chamada economia solidária em seu livro. Há muito antagonismo entre ela e as idéias de Keynes?

A economia solidária, a meu ver, seria uma revisão da escola estruturalista, de Raúl Prebisch e Celso Furtado, que criam esse pensamento próprio dos latinos a partir da visão de centro e periferia. Acho fantástica a idéia de um grande galpão para as trocas solidárias de excedentes de serviços e mercadorias, utilizando uma moeda social, que não teria a função especulativa (juros, por exemplo) definida por Keynes, mas apenas a função de troca. Com isso evitaríamos as crises econômicas.

Haveria pleno emprego na economia solidária?

Sim. E as pessoas fariam aquilo que fosse de sua maior vocação.

Os dois sistemas poderiam conviver?

O conceito de moeda fica complicado quando a Igreja passa a aceitar a cobrança de juros. Isto gera a especulação por moeda. Em vez de meio de troca apenas, o que é uma função muito importante, a moeda para a ser instrumento de especulação. Isto não pode ocorrer.

O financiamento à produção não é algo importante para a sociedade?

Na economia solidária, a produção está diretamente ligada ao consumo. Isto representa praticamente o estágio final do comunismo porque o produtor leva todo seu excedente para trocar por produtos e serviços que não tem. Ninguém faz segredo de seu ofício. Economia é cuidar da casa, desde o corpo até nosso planeta. Não é especulação.